Maconha: Libera? Não libera?

A dica veio da Dra. Ilana Pinsky e a matéria saiu na seção OPINIÃO na Folha de São Paulo no dia 01 de fevereiro de 2014.
Um debate escrito entre o Dr. Elisaldo Carlini da Unifesp e a Dra. Ana Cecília Marques presidente da ABEAD.
Posições radicalmente contrárias e convictas.
Nesse link você pode ler o que foi publicado sobre maconha aqui no blog.
Abaixo você pode ler a opinão dos dois especialistas.

O Brasil deveria descriminalizar a maconha?

O novo status da maconha
SIM

Elisaldo Carlini
No século 19, medicamentos à base da maconha (Cannabis sativa L) eram disponíveis aos pacientes.
Assim dizia o doutor J. R. Reynolds, médico da rainha Vitória da Inglaterra: "Em quase todas as moléstias dolorosas, eu achei a maconha ("indian hemp") a mais útil das drogas". Está escrito em famoso livro da terapêutica americana: "Cannabis é muito valiosa para o alívio da dor, particularmente aquela dependente de distúrbios nervosos..."
E a maconha usada como medicamento naqueles tempos não causava "graves" intoxicações. D. S. Snyder, ao examinar a literatura médica do século 19, diz: "É marcante que muitos relatórios médicos não mencionam qualquer propriedade intoxicante da droga".
Raramente existia (se é que houve alguma) indicação de que pacientes --e centenas de milhares devem ter recebido Cannabis na Europa no século 19-- estivessem "chapados" ou mudassem sua atitude em relação ao trabalho, seus semelhantes, ou sua pátria.
Mas, na metade do século 20, a situação muda totalmente. "A maconha  é uma droga totalmente viciante, merecendo o ódio dos povos civilizados", declarou o governo egípcio, em 1944. Na convenção de 1961, a ONU coloca a maconha , junto com a heroína, na classe das drogas com "propriedades particularmente perigosas". E a maconha  passou a ser considerada "erva do diabo", satanizada que foi. Não importa discutir quais as razões, certamente pouco científicas, que levaram a tão esdrúxula situação.
Mas, a partir da segunda metade do século 20, o quadro começa a modificar-se, e a maconha renasce como poderoso medicamento para certas patologias médicas.
A identificação dos princípios químicos ativos da maconha  a descrição segundo a qual o cérebro humano tem "receptores" para esses princípios, a surpreendente descoberta de que o nosso cérebro sintetiza uma substância capaz de atuar naqueles receptores (como se tivéssemos uma maconha  produzida pelo nosso próprio cérebro, a anandamida) e a descrição de um sistema de neurotransmissão nervosa chamado de sistema canabinoide endógeno trouxeram um novo status científico para a maconha .
E mais: muitos trabalhos científicos clínicos foram feitos no mundo demonstrando claramente que a maconha tem boas propriedades terapêuticas (dores neuro e miopáticas; esclerose múltipla; náusea e vômito resultantes da quimioterapia do câncer; e mais recentemente epilepsia e dores terminais do câncer).
E, ainda, recentes pesquisas epidemiológicas, seguindo milhares de usuários crônicos e até pesados da maconha  feitas em importantes universidades dos Estados Unidos e do Reino Unido, cabalmente mostram que a maconha  não afeta o desempenho cognitivo, não produz ganho de peso e não está associada a efeitos adversos da função pulmonar.
Como consequência final desses conhecimentos novos, Canadá, Estados Unidos, Reino Unido e Holanda já têm medicamentos fabricados à base de maconha ou seus derivados. O medicamento fabricado no Reino Unido já foi aprovado pelos Ministérios da Saúde de 13 outros países (o último a aprovar foi a França) e é utilizado clinicamente, sob receitas, em mais de duas dezenas de outros países.
E todos esses fatos estão à disposição do leitor em cerca de um milhar de trabalhos científicos, sendo apoiados pelo "American College of Physician", "American Medical Association", Ministério da Saúde de Israel, Espanha, Itália etc. (para maiores detalhes, ver o trabalho de revisão "Cannabis sativa L (maconha ): Medicamento que renasce?").
Até poderia ser dito que, para o opositor brasileiro do uso médico da maconha , à semelhança de uma pessoa ao ser confrontada com um documento que contradiz frontalmente sua superada convicção, declara: não li e não gostei!
ELISALDO LUIZ DE ARAÚJO CARLINI, 83, é professor titular de psicofarmacologia na Universidade Federal de São Paulo e pesquisador emérito da Secretaria Nacional de Políticas sobre Droga do Ministério da Justiça
Cara ou coroa?
NÃO

Ana Cecília Roselli Marques

Muito se tem falado por aí sobre o uso terapêutico da maconha  e sua possível legalização no Brasil, após as mudanças de legislação ocorridas no vizinho Uruguai.
Mas pouco se tem discutido, profundamente, a questão. O fato que parece estar esquecido é que a maconha  é uma droga psicotrópica que causa dependência, uma grave doença do cérebro, e que cursa com muitas complicações.
É verdade que algumas pesquisas vêm sendo feitas, inclusive no Brasil, para entender a ação dos diferentes componentes da Cannabis sp e sua utilização como medicamento. Mas também é verdade que os resultados ainda não são replicáveis (aplicáveis).
Isto é, para o controle da dor ou do apetite, por exemplo, substâncias já testadas devem ser aplicadas. Experiências com a maconha  sem consentimento assistido (informações sobre todos os benefícios e malefícios) são a solução?
Estudos mostram que, além da dependência, o uso crônico produz bronquite crônica, insuficiência respiratória, aumento do risco de doenças cardiovasculares, câncer no sistema respiratório, diminuição da memória, ansiedade e depressão, episódios psicóticos e de pânico e, também, um comprometimento do rendimento acadêmico e/ou profissional. Por que optar por um caminho que oferece tantos riscos?
A Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas, a Abead, pesquisou sobre algumas experiências de descriminalização no mundo e elaborou uma síntese de evidências sobre os resultados.
Foram eles: o aumento do consumo, a redução da idade de experimentação, a diminuição do preço de comercialização e, portanto, um aumento da disponibilidade e do acesso à droga e, pior, um mercado para turistas que pode trazer outros riscos sociais e de saúde.
Por esses e outros motivos, é preciso debater muito mais antes de se alterar a lei ou mesmo propor medidas mais liberalizantes.
No Brasil, a percepção de risco relacionado à substância é muito baixa: a maconha  é vista como uma droga leve, natural e que não faz tão mal, a despeito das respeitadas pesquisas já há muito publicadas que mostram um aumento significativo da taxa de doenças mentais entre os usuários quando comparados à população de não usuários da substância. Onde fica o direito humano, principalmente o do adolescente, à vida saudável, à saúde mental?
Então, vale ainda mais uma pergunta. Se, em países desenvolvidos, a legalização trouxe consequências desastrosas, por que no Brasil, que enfrenta tantas outras dificuldades, como a falta de tratamento especializado, a falta de prevenção, uma política de drogas que precisa ser revista, tal impacto seria diferente?
Para além dos usuários e defensores de direitos individuais de usar drogas, e não daqueles que lutam pelos direitos coletivos, é preciso entender que existem "clássicos" interesses econômicos em um novo negócio. Foi assim com o cigarro, tem sido assim com a bebida alcoólica, e o método utilizado para conseguir tal empreitada tão perversa é o uso da ambivalência.
Vale a pena lembrar que a maconha  não é um produto qualquer. É uma droga psicotrópica, mais uma entre tantas cujo consumo é preciso controlar, de impacto nas células humanas, na família e na sociedade.
Não é possível fechar os olhos diante do jogo mercantilista. É preciso olhar firmemente para a situação da população brasileira, e não submetê-la a mais um fenômeno que não possui recursos para ser manejado. De que lado cairá a moeda?
ANA CECÍLIA PETTA ROSELLI MARQUES, 59, é psiquiatra e presidente da Abead (Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas)



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