Muito bom o artigo de José Alexandre S. Crippa que saiu no "O Estado de S. Paulo" no último domingo, 27 de abril.
Abaixo você lê o artigo na íntegra.
A erva e o equilibrista
Na corda bamba, debate sobre maconha deve estar respaldado em dados científicos
JOSÉ ALEXANDRE S. CRIPPA É PROFESSOR DA FACULDADE DE MEDICINA DE RIBEIRÃO PRETO DA
USP E MEMBRO DA INTERNATIONAL CANNABINOID RESEARCH SOCIETY
José Alexandre
S. Crippa
Qualquer um se lembra do que estava
fazendo no dia 11 de setembro de 2001, por ocasião do ataque terrorista ao
complexo do World Trade Center na cidade de Nova York. O que é menos conhecido
é que, numa manhã de agosto de 1974, o jovem equilibrista francês Philippe
Petit cruzou sem autorização os 43 metros que separavam as Torres Gêmeas. Com
uma vara de oito metros de comprimento, Petit atravessou o espaço entre os dois
edifícios oito vezes, ao longo de 45 minutos - sem nenhum cabo de segurança.
Canabinoides. Compostos têm mostrado forte potencial
terapêutico para diversas doenças
Olhando esses dois eventos, alguém
poderia afirmar que ficar dentro de um escritório é algo perigoso, mas
atravessar um prédio a mais de 400 metros do solo é extremamente seguro. Essa
observação obviamente não é correta. Assim como seria equivocado afirmar que a
maconha é segura pelo fato de ter usado a droga previamente e não ter tido
complicações. Igualmente, o argumento de que uma simples tragada levará à
dependência da maconha equivale a dizer que beber uma taça de vinho levará ao
alcoolismo. Por isso, todo debate a respeito da legalização da maconha deveria
necessariamente estar respaldado em dados científicos empíricos baseados em
experimentos clínicos e em estudos epidemiológicos.
Maconha
é o nome popular da planta Cannabis sativa, que possui
centenas de componentes, dos quais aproximadamente 80 são denominados
"canabinoides", por atuarem nos receptores cerebrais com esse mesmo
nome. Nos anos 1960, as estruturas químicas dos principais canabinoides foram
descritas pelo professor Raphael Mechoulam, de Israel, incluindo o delta-9-tetrahidrocanabinol
(THC), o componente da planta responsável pelos efeitos psicoativos da droga,
como alterações na percepção, orientação e controle motor.
Entretanto, vários outros
canabinoides conhecidos, muitos deles com potencial terapêutico, não apresentam
esses efeitos. Um exemplo é o canabidiol (CBD), um canabinoide que possui
diversos efeitos opostos aos do THC, como efeito ansiolítico e antipsicótico.
Diferentemente do THC, o uso do CBD isoladamente não apresenta os efeitos
típicos do uso da maconha. Nosso grupo e outros grupos brasileiros estão na
vanguarda nas pesquisas sobre o potencial terapêutico dessa substância.
Conduzimos pesquisas do CBD na doença de Parkinson, esquizofrenia, ansiedade,
distúrbios do sono e dependência de drogas, entre outras condições.
Já na década de 1970, em estudos
colaborativos, Mechoulam e o professor Elizaldo Carlini, da Universidade
Federal de São Paulo (Unifesp), observaram em animais e em humanos os efeitos
anticonvulsivantes do CBD. Entre novas evidências, o caso da menina com quadro
de epilepsia refratária decorrente de rara doença genética, que recentemente
ganhou notoriedade na mídia por ter melhorado com o uso do CBD, reforçam essas
observações pioneiras.
Dessa forma, é importante ficar claro
que os canabinoides são compostos presentes na maconha, mas os dois não são
equivalentes. Um medicamento que combina CBD e THC já está disponível para
tratamento de esclerose múltipla em países como Canadá, Espanha e Reino Unido.
Entretanto, é de se lamentar que, por desinformação ou má-fé, o efeito benéfico
dos canabinoides seja usado como justificativa para a legalização da maconha
para fins recreativos.
Sabe-se que a maconha é a droga
ilícita mais utilizada no mundo e seu consumo pode levar algumas pessoas a
desenvolver sintomas psicóticos transitórios, como alucinações, delírios e
alterações cognitivas. Cada vez mais estudos controlados sugerem que o uso
recreativo crônico, dependendo da dose, quantidade e precocidade do início,
pode produzir alterações cognitivas permanentes e facilitar o desenvolvimento
de transtornos psiquiátricos em usuários vulneráveis. Estudos epidemiológicos
prospectivos de longo prazo realizados em alguns países sugerem uma associação
entre uso crônico de maconha e maior risco para o desenvolvimento de
esquizofrenia. Atualmente, a síndrome de abstinência da maconha é uma condição
reconhecida e alguns usuários podem vir a desenvolver dependência, cujos
tratamentos disponíveis demonstraram eficácia limitada.
Em colaboração com grupo do King’s
College, de Londres, publicamos estudos mostrando as áreas cerebrais onde o THC
e o CBD atuam individualmente. Mais recentemente, revisões da literatura
apontam que o uso crônico e recorrente de maconha pode levar a alterações no
funcionamento e na estrutura cerebral - particularmente no cérebro em
desenvolvimento, ou seja, entre jovens e adolescentes. Um estudo publicado na
semana passada sugere que essas alterações ocorrem mesmo em usuários
ocasionais, achado que ainda necessita ser reproduzido. Complicações clínicas
como câncer, problemas cardíacos, respiratórios e imunológicos também foram
associados ao uso da maconha inalada.
Nesse cenário, em reunião científica
no mês passado na qual proferi conferência a convite da presidência do Uruguai,
não foram postos em debate alguns aspectos cruciais que seriam necessários,
dada a recente legalização da droga naquele país. Faltou discutir como será
oferecida à população informação dos conhecidos problemas do consumo, incluindo
aspectos centrais como o uso e direção e de que modo se dará o tratamento para
aqueles que desenvolverem dependência e suas complicações.
Os compostos canabinoides têm
demonstrado incrível potencial terapêutico para diversas doenças e acredito que
poderão ajudar milhões de pessoas no mundo todo, inclusive no Brasil. A
ampliação dos ensaios clínicos avaliando segurança, faixa de dose e extensão de
eficácia é essencial. A consequente regulamentação do uso dos canabinoides
poderá levar a importante redução de sofrimento e melhor qualidade de vida a portadores
de diversas doenças e transtornos. Por outro lado, o debate sobre a legalização
da maconha para fins recreativos deveria ocorrer após alguns aspectos serem
garantidos: primeiro, a sociedade ser informada de modo claro, sem alarmismo,
do atual conhecimento científico dos riscos do uso da maconha; segundo, termos
certeza de que todos os usuários poderão ter acesso a tratamento adequado no
caso de complicações. Isso tudo desprovido do viés político ou ideológico, que
só aumenta a confusão e posterga decisões concretas. Caso contrário,
continuaremos na corda bamba da desinformação, e sem nenhum cabo de segurança.
Comentários